PREFÁCIO

~*~


Esse livro me pede uma franqueza que ninguém deve ter. Então, caros olhos que me acompanham, se você se sentir confuso e, talvez, encontrar semelhanças pessoais com os personagens, não entre em pânico, não é uma coincidência fatal. É só que a loucura é a realidade em outro formato e até mesmo as geometrias pessoais se encaixam.


~*~

11.10.08

Mas os temporais acabam...

Belinda não chegou a ver a vida sem lembranças... A verdade é que, num desses tratamentos de choque, o pára-raios foi demais e o reloginho dela parou. Parou tão parado que não voltou mais. Sorte mesmo é que a hora que tanto temia não chegou também e ela não viu os papéis que você está lendo agora.

Não sei se foi ironia ou acaso, mas, ao que tudo indica, meus filhos de compadeceram da minha idade e resolveram me tirar do sanatório e colocar num asilo. A diferença é que minhas palavras deixaram de ser inválidas, ao menos pelas enfermeiras, e esse papo de fim da vida realmente cola até mesmo com pessoas não muito sentimentais, o que talvez justifique você estar lendo isso.
Talvez, somente talvez, porque essa história não é minha, leitor, é só da Bela. Ela, que tentava explicar que coisas de funções opostas e inexplicáveis são segredos poéticos, a pureza da retina do coração.
Belinda foi livre, tão liberta que me deu asas. Asas, leitor, impodáveis. A verdade é que elas podem nascer em qualquer um. Mas o que eu sei, não é mesmo? Continuo sendo apenas um velhinho sem importância com um guarda-chuva invisível.
Serafim Carmela.

Capítulo 10


- Senhoras e Senhores Esponjas Falantes! Uni-vos! Vamos nos libertar dos tiranos crócratis e suas pílulas da sonolência! Viva aos bluberianos!
- VIVA!
- Alix nos salvará!
- VIVA ALIX!
Ela urrava para a multidão e as poucas pessoas, comparadas com a quantidade que ela enxergava, respondiam eufóricas no pátio do hospício. Mas tumultos assim são sempre contidos com seringas, agulhas e tranqüilizantes. Mesmo assim, ela não desistiu. Na quarta tentativa, foi submetida a tratamento de choque. Os diferentes urros, de dor agora, esfriaram qualquer sentimento dos outros presos.
...
Agora você entende como criar outro mundo pode ser a única forma de sobreviver.
...
- Gostou do seu presente? – Ela perguntou num tom triste.
- Muito. Que voz melancólica é essa?
- Ah... To meio cansadinha só, Fim...
- Já viu Judith hoje?! Ela sempre te anima...
- Vi, sim, veio me visitar. Acordei com ela, pousando sobre o meu nariz...
- Ah, Pequena, eu e Judith tempos uma surpresa pra você!
- E o que é?
- Uma flor de papel!
- Desse jeito mesmo, em cima de um canudo?!
- Sopra!
Ela me olhou de esguelha com um sorriso de menina levada e soprou. As pétalas de papel seda voaram e planaram feito borboletas até o chão.
- Viram borboletas! De onde você tirou essa idéia?
- Uma caixinha...
- Caixinha de quê? – franziu o cenho.
- Ham...
- Fala.
- De remédios.
- Você me prometeu que não ia trazer coisas do outro mundo pra cá!
- Eu sei... Eu sei...
- Ah, Fim...
- Belinha, ainda existem coisas boas...
- É que... Eu to tão cansada...
- Deita perto de mim?
- Deito sim.
- Bel?
- Oi.
Olhei bem dentro dos seus olhos.
- Você salvou a minha vida.
- Serafim... Você sabe muito bem que se eu sou chuva, você é vento.
- Isso torna os beijos temporais?
- Sim, temporais!
Enlacei-a pela cintura.
- Então hoje vamos fazer um temporal atemporal!

Capítulo 9


Ela acordou meio mareada. Meio que tentando acordar de um sonho ruim que nunca terminava. O pesadelo da realidade, aquele em que os beliscões resultam apenas em roxos.


Devia ter horas que estava ali, não tinha relógio. Levantou-se do lugar qualquer que tinha jogado o corpo e avistou o quadrado sem tampa em que se encontrava como um todo. Banho de sol, arame farpado e tudo mais. Parecia um presídio, mas não se lembrava de ter cometido algum crime (a menos que embriaguês tenha se tornado um).
Seu olhar caiu nos outros. Abobalhados, alguns sem roupas, todos muito calmos, outros que gostavam de se repetir. Surgiu um cara mancando, olhando torto, saindo do prédio, parecia atordoado.


- O que houve com você? – ela não resistiu.
- O trovão! VRRRRUUUUM! Raios dentro de mim! PÁRA-RAIOS! PÁRA-RAIOS! PÁRA-RAIOS!- ele saiu cantando e girando em piruetas toscas.


Ela, num momento estático, caiu em si, “hospício”, “estou num hospício”.


- AAAAAAAAAAAAAAAAH! – berrou horrorizada. “Não era possível”. Mas era.


...


E foi assim que eu conheci a Belinda. Minha princesa foi uma lunática tanto quanto eu fui trajado. Mas dizem que, depois da morte, tudo isso vira lucidez artística. Nesse campo, eu só conheci a Belinda tocando meu violão inexistente.


...


- Não consigo me lembrar... Não consigo me lembrar, Fim!
- Do quê, Bela?
- De antes!
- Antes de quê?
- De você.
- O passado?
- Foi... Ele se engoliu, caiu num buraco negro e explodiu!
- Não se preocupe... Estamos só... Ficando velhos...
- Tenho medo de... Quando eu não me lembrar de mais nada.
- Você não precisa, querida... O que importa não são as lembranças, mas o significado delas.
- Sempre achei que ele se esvai quando a lembrança se perde...
- Ah, não... O significado fica impresso em você.
- O lance da vida impressa?
- Um pouco... Por exemplo, você vai sempre ter algo que precisa mais que tudo, Bel... Como se dependesse daquilo diferente de todos os outros.
- O quê?
- Você sabe...
- Eu preciso... Eu preciso de amor! Preciso, feito necessidade biológica!
- Isso! Coisas assim nunca mudam, independentes da memória.
- A memória faz falta se o significado for vazio?
- Algo do tipo. Se o significado for vazio, a memória não vale mais do que ela representa, nem menos. Tê-la, ou não, não importa. A falta de significado é constante.
- E será que tem como a memória perder o significado?
- Quanto a isso, eu não sei, mas certamente você não é uma pessoa que se daria ao luxo de perdê-lo.
- Mas e se... Não fosse coisa minha? E se... Alguém roubasse o significado?
- Sabe o que eu acho?
- Hum?
- Que você tá se entupindo de ficção científica, porque tá com medo do nosso guarda-chuva não funcionar.
- AAAAH, Fim...
- Vamos, meu amor?
- Vamos!

Nós dois seguramos a haste do guarda-chuva e puxamos a manivela hidráulica que Belinda inventou. Os pratos com furos começaram a girar e, quando a água começou a cair, corremos. Para onde eu não sei, mas corremos com a chuva a nos envolver o corpo e alma. E, como se eu já soubesse, o corpo encharcado desconhecia tamanha pureza que a alma alcançava.

Capítulo 8


- Belinda Sodré? – surgia uma voz forte do meio do abismo.


Era um oficial bem trajado, alto, forte e armado, com roupas impecáveis como o seu orgulho, perguntando a uma mulher que aparentava insanidade completa, caída ou melhor, despejada em um banco de praça qualquer, com os cabelos bagunçados (tão eriçados que o termo chega a soar como elogio) e roupas esfarrapadas e imundas.


- Não! Pra você eu sou a princesa das esponjas falantes!


Ela tombou do banco e terminou com uma risada esquizofrênica e bêbada. Não, trêbada e estridente, melhor dizendo.


- É essa mesma, levem-na. – disse, virando-se para os outros dois que o seguiam.
...


E a liberdade dura pouco para os que entorpecem com a verdade.

...

- Acho engraçado...
- O quê, Bel?
- Meu amor por você seria imortal se ele simplesmente acabasse.
- Você diz que é como se a morte alimentasse uma esperança de que ele seria infinito? Caso um de nós partisse...
- O outro viveria de uma esperança que talvez não fosse verdadeira, porque nunca seria concluída.
- O para sempre sem sempre.
- Talvez a gente devesse se deixar, Fim...
- Mas por quê?
- Não quero que você pense que meu amor é infinito, meu amor é finito, sim.
- Mas é claro que é! Eu sempre soube.
- Soube?
- Onde o seu termina, o meu começa.
Ela me olhou dentro dos olhos e ficou assim por minutos, como que a garimpar uma pedra preciosa. Abriu um sorriso largo:
- Quero te dar um presente, mas você precisa me ajudar a construí-lo...
- E o que é?
- Um guarda-chuva!
- Hã?! Tá achando que vai chover durante muito tempo, é?
- Mais ou menos... É um guarda-chuva que chove dentro dele!
- Mas, Belinda, isso não é exatamente o contrário da função de um guarda-chuva?
- Acaba que é mesmo... Eu... Só queria te deixar algo para se lembrar de mim caso eu não volte mais para o nosso mundo...
- Algo de função oposta?
- Não, Fim! A chuva! Assim você pode me ter quando tiver saudade, é só me imaginar como ela.
- Imprevisível, inesperada e incrível... Você já é a chuva, meu amor.
- Ah... Fim... Vamos então...?
- Claro! Eu também tenho algo pra você, mas é segredo ainda...
- Já sei o que é... Os papéis que você tanto escreve e nunca me deixa ver...
- Vai chegar a hora, meu bem... Vai chegar...
- Ai... Tem algo que me diz que eu só queria que ela não chegasse...

Capítulo 7


14 de Janeiro de 2000



Se existe mesmo essa coisa de que só se pode agarrar uma oportunidade boa uma vez na vida, posso desistir também. Estava bem melhor dando aulas de filosofia. Mas não seria o mesmo, seria covardia e ando há muito agindo assim. Meu querer tinha que ser forte. Não sei onde eu estou, nem do que mais foi perdido, se foi o lugar ou se foram as partes de mim que desfaleceram sem eu notar.
Acho engraçado como não estar no meu escritório faz com que essa situação fuja a normalidade e conversar com folhas de papel em branco soe tão ridículo. As minhas explicações ilógicas, é um saco falar de mim.
Eu vejo ao norte um sol escaldante e ao sul uma chuva pesarosa, a leste vegetação rasteira e a oeste mata densa. O caminho a ser escolhido é o caminho que vou narrar.


Com muito calor,


.Bel.

...


Quando não se tem casa, qualquer lugar serve como abrigo ou lugar nenhum é seu lar. A Bela vagava, pois não tinha para onde voltar.


...

- Judith e seus encantos!
- Como ela está hoje?
- Voando como sempre. Perguntei a ela se gostava de voar só por voar ou de voar a algum destino.
- E o que ela disse?
- Que gostava era de voar mesmo e que nenhum lugar para ela era impossível de se chegar!
- Nem que tivesse que voar um mês inteirinho?
- Nem que tivesse... Disse que tem borboleta que gosta de ficar fazendo pose de flor em flor, mas ela num gosta não.
- Não gosta de ser admirada?
- Não, diz que voa pra se libertar...
- Libertar do quê?
- Do chão.
- Da gravidade?
- Oxi, Não! Libertar das poças para se enamorar de onde a chuva começa. Nunca vi igual gostar tanto de água que despenca em gotas...
- E o vento?
- Ah... Judith já se confunde, não sabe se ela é o vento ou se o vento é ela mesma.
- Mas não é tudo a mesma coisa?
- Oras, o que muda é quem se enamorou primeiro.
- Agora tá explicado o porquê que ela gosta tanto de chuva.
- É mesmo?
- É, o vento já se casou com a chuva no primeiro dia que ela caiu.
- Que nem você no primeiro dia que me viu?
- Não, eu me apaixonei por você no dia que eu rasguei os prantos da mãe.
- Então, acredita em destino?
- Acredito nada! Me perdi pela vida e, dentro desses seus olhos, existe mais vida que no resto do mundo.
- E como você pode ter tanta certeza disso?
- Porque antes eu achava que conhecia tudo do mundo e ao te conhecer descobri que a vida não tem fim.
- Mas e a morte?
- A morte é onde tudo começa.
- Não entendi nada, Serafim.
- Uma vida que acena para outra que se inicia. A morte não é um ponto final, mas, sim, uma vírgula.
- Tá, tá, tá... Eu falo da morte pessoal, especificada, a minha ou a sua, por exemplo.
- Acho que a gente não morre, só o relógio que pára.
- Mas se o relógio parou é porque acabou, ué.
- Aaaah... Cê acha mesmo que a vida acaba quando o tempo esgota? A vida pra mim é coisa que perdura no ar, na terra, no passado e continua com o que vier adiante.
- Vida após a morte?
- Que nada! Vida não tem morte!
- Mas como?!
- Belinha... A coisa, que o tempo é, é o tempo que é a coisa, porque a coisa é o tempo e o tempo é a coisa.
- A vida é de quem nasce, Fim!
- Claro! Mas quem nasce morre.
- Então! Não entendo mais nada...
- A gente nasce com um relógio pra imprimir a vida no mundo, o relógio pára e o impresso fica.
- Então aqueles homenzinhos dos meus livros de História têm mais vida impressa?
- Só se for em papel! A vida pode ser impressa em cada suspiro, abraço, lampejo...
- Ai... E para entender a morte é só vivendo, é?
- É... A morte é quando a vida troca de roupa.
- Como é que é?!
- A vida é criança que nunca pára de crescer, daí que a gente é a roupa, uma hora fica pequena ou justa demais.
- Aí a gente é descartado?
- Não... A gente vira colcha de retalhos. A vida é tudo o que foi, o que passa e o que vai ser.
- Acho que entendi... Só continua confusa pra mim a tal da morte!
- É, pra mim também... Acho mesmo que só dá pra entender quando morre.
- Mas aí num acaba?
- Não sei. Talvez seja feito para não entender.
- Tá me falando que a morte é o desentender?
- Talvez...
- É, quem sabe?
- Quem deveria saber?

Caímos na gargalhada... Até... Até que... Um silêncio reinou e ficou no ar só o barulho da caneta riscando o papel. Ela repousou os olhos em mim...
- Serafim...
- Hum?
- O que você tanto escreve?

Capítulo 6


02 de Janeiro de 1998


Saí com um coração vazio. Feito uma casa de teto transparente, mas tão alto que mal se enxerga o céu. Sempre me perguntando “e agora?”, como se fizesse alguma diferença... Larguei tudo e foi como se nunca tivesse sido tudo. Peguei uma mochila, um cantil, dois pares de roupas, pouco dinheiro, esse caderno. Fui. Pedalei 150 km e desisti da idéia de seguir norte. Até agora não conheci ninguém, deve ser provavelmente porque minha vontade é de solidão. Uma hora passa. Caminhoneiros são perigosos, vou ter que arrumar outro transporte. Quanto ao destino, a ordem alfabética soa a melhor opção.
Sem muita vontade de escrever,

Bel.

...


Dizem que o choro começa quando uma gota salgada desce do olho. Cortando a face delicado, como que tentando apagar um incêndio íntimo. Labareda alcoólica. Transparente. Mas não. O choro começa de uma lágrima que fervilha lá de dentro, num poço escaldante de dor. O choro é o que transborda, o insuportável. E a Bela já não tinha como transbordar mais, o poço tão escaldante levou a dor à calefação, restando apenas um buraco de antimatéria.

...



- E se eu te dissesse que meu amor não tem definição?
Ela, que se entretinha catando acerolas do pé, virou o rosto de uma vez.
- Ah, é mesmo? E vai me dizer como que me ama?
- Oras, dizendo...
- Nem como amigo, nem como amante, nem como nada?
- Não. Como você.
- A que fim você quer levar a isso, Serafim?
- De que não tem fim, Bel.
- Está a me dizer que vai se contentar...
- com toda e qualquer forma de amor em que caiba você.
Ela sorriu, levando uma acerola aos lábios, inspirou.
- Já te disse que acerolas me deixam apaixonada?
- Então para conquistar seu amor preciso te dar acerolas?
- Haha! Não, elas só me lembram do amor que fica guardado em mim.
- Amor por quem ou quê?
- E eu vou lá saber... Minha cabeça é cheeeia de acerolas!
- Mas eu fico aonde nisso?
- Você... entrou em mim de um jeito que minha única maneira de caber foi dentro de você.
- E, quando abraçou essa pedra oca de sentimento que eu carrego, de lá brotou uma flor.
- Não! Um pé de acerola.
- Ah, Bel! Acho que já temos uma plantação então...
- Como você acha que seria se todos plantassem acerolas?
- Enjoativo?
- Quero dizer... Vários tipos de acerolas.
- Existiria mais acerola do que pessoa.
- Que já nem caberia dentro da gente é?
- É, tanta que seria uma pandemia.
- Toda gente ia respirar acerola?
- Todo tipo de acerola.
- Toda forma de amor...?
- É, Bel... Toda forma de amor...
Ela me abraçou.
- Também te amo sem definição.

Capítulo 5


30 de Dezembro de 1997


É preciso sentir a maior dor do mundo para entender. Ou pior. É preciso não sentir. O fim é um vazio súbito de tudo, o todo socado dentro do nada.Eu gosto de correr. Tão rápido que minhas pálpebras lutam para se fechar. Lutam por nada. Um incômodo tranca minha lágrima. O vento não a seca, nem a deixa escorrer. Ela se tranca dentro do olho. Talvez seja vazio querer a dor.Mas é isso que eu quero por fim dos dias. O fim dentro dele mesmo.Desde que você me deixou, eu me odeio por não poder ir junto. Não por não estar partindo ao seu lado. Só porque não me cabe mais dentro de você. E eu sigo amando uma parte que não me tem. Meu amor deixou de ser amor próprio.Esse é o fim da minha sanidade. Nada mais me importa. Nada mais me cabe. Porque. Simplesmente. Nada mais eu sinto. Fadada a não ser nem mesmo uma pedra.Já não percebo o vento, a chuva ou o calor. O vazio é o sofrimento sem marcas.O vazio é a dor egoísta. Meu mundo só meu. O infinito vão.
Bem-vindo ao vácuo existencial. O poder caiu. Nada que eu exiba ou possua tem valor. Eles. Os outros. Invejam. Minha vida de hastes ocas.A aparência não enxerga a flor peçonhenta que roça.
Fé? Eu não tenho Deus. Deus morreu com o milagre (que não vem).A traição é um corte esperto. Arranca o orgulho. E dá a luz ao fracasso.Obrigada pelo presente. Posto que antes não saberia que humildade é coisa assim. De tanto não ter, têm-se tudo.
Os papéis do divórcio estão sobre a cama. Não se preocupe comigo.Estarei bem. Eu e minha bicicleta e o mundo. Se o nosso passado foi sem significado algum. Preciso ao menos sair em busca de um presente que preencha meu futuro. Eu me recuso a não viver.
.Belinda.
P.S. Desejo profundamente que você se foda. Adeus.

...
Ela suportou a perda da mãe.E a perda do pai.Agora até que ponto ela irá suportar a perda do mundo?
...
A Bela sentou a treva distante do meu rosto. Como as horas apartam o dia da noite, ela olhando, eu tentando entender as vias submersas do seu olhar.
- Vamos inventar uma nova canção? – quebrou o silêncio.
- Cansou-se das antigas, Bel?
- Não... É que já quero outro final.
- Só não entendo o porquê de tantos finais.
- Pra não ter desculpa de achar que o fim foi diferente só porque a vida foi a mesma.
- A borboleta quebra só um casulo, você insiste em quebrar vários. Pra quê tanto espinho?
- Deixar o chão, Fim! Depois que quebra o casulo, a borboleta nunca mais rasteja, só voa. A vida tem muitos casulos e eu quero voar em todos os sentidos.
- Quais são os limites?
- Não ter limites.
- Se todos fossem assim, o mundo viraria uma desordem.
- Ah, oras, o outro não pode ser doutor do meu limite, assim minha vida seria ilhada, mas minha falta de limites também não pode interferir no outro. Entende?
- Na verdade... Não. Como é possível que o outro não te limite se sua liberdade termina no outro?
- Os seus limites definem apenas o seu mundo e o de mais ninguém. É preciso ter respeito entre os mundos para haver equilíbrio.
- Você quer dizer que... Assim a liberdade não vira imposição?
- Exatamente. Tem quem ache que ser livre é se libertar do outro, mas isso é...
- Solidão.
Ela concordou fechando e abrindo os olhos de leve.
- Bel, você podia mudar a humanidade com esses pensamentos...
- Ah! A humanidade não quer ser mudada, querido.
- Então como a gente fica? Entre o amor e os demônios?
- Onde a gente quiser.
- Eles nunca vão deixar...
- Não, eles nunca vão saber.
- Um dia, a verdade virá à tona.
- Fim, a humanidade não consegue curar sua cegueira, vive da mentira...
- E qual é a mentira?
- A casca.
- Hã?!
- As aparências. A sociedade continua despreparada para lidar com o íntimo.
- Mas já se discute tanto sobre sexo e outros afins com os adolescentes... As coisas não são tão por debaixo do pano como antes.
- Meu fim, se conhecer o corpo humano fosse intimidade, os médicos seriam gurus do íntimo.
- Haha! Tá... Aonde você quer chegar com isso?
- Todo mundo tem medo de mostrar o que esconde atrás das curvas, do cabelo, das roupas... Vai além dos órgãos o que é raro, o que importa.
- Então está a me dizer que o mundo é ralo?
- Não, mas que vivem como se fosse.
- Ah, vamos tirar nossas roupas e ser livres como pássaros?
- A gente não precisa tirar as roupas...
- Mas você não acabou de dizer que elas nos limitam?
- Sim, mas só quando não se enxerga atrás delas!
- Entendi... Ei, e a nossa nova canção?
Sorrimos. Puxei-a pela mão e nos pusemos a rodar e rodar no salão. Não tinha som algum, mas eu tinha certeza de que ela ouvia o mesmo que eu.

Capítulo 4

- Larga disso, menina! Por que você acha que sua mãe te deixou? Se ela te amava assim, não teria se matado!
- Por que você mente tanto?
- Vai continuar mesmo com isso de ajudar quem não precisa?
- Eles não têm o que comer!
- E você acha que eles iriam te ajudar se fosse o contrário?
- Isso não importa.
- Claro que importa. Eles nunca vão te retribuir nada.
- A gente nunca dá querendo receber.
- Isso é coisa de fachada, minha filha, no mundo, tudo o que se faz é pelo o que favorece a si mesmo. Não desperdice seu tempo com coisas desfavoráveis.
- Não é justo, pai.
- A vida é assim.
- Não, o senhor que quer que a minha vida seja assim.
- É desse jeito que as coisas funcionam.
- Não sei porque o senhor quis me ter então.
- Como assim?
- Pra quê então me dar essa chance de viver num mundo todo estragado? Me deu a vida para em seguida extirpá-la do peito.
- Ah, então vai se matar como a sua mãe?
- Não. Eu vou tentar mudar as coisas se o senhor não me impedir como fez com ela.
- Acredite, eu serei o menor dos seus problemas.
...
E, quanto a isso, ele estava bem certo. Se já era frívolo aceitar desastres de um jeito tão natural, lá fora, o calor só existia se assim fosse.
...
A chuva escorria sobre o meu rosto, havia horas que eu estava ali, sentado, observando-a de pouco a pouco me tocar. Agora, o ambiente parecia todo molhado e eu já era o ambiente, encharcado, pautando que, ao fim do meu dossiê temporal, nem toda a chuva do mundo faria com que a chuva de dentro parasse de me lavar. Constantemente. Eu estava só. Belinda sonhava. E eu estava só. Belinda não sentia a chuva. Ela estava só.
Horas. Éramos nós. Dois nós apertados. Cegos, sem saída, sem desfeita. Nós de silêncio.
A verdade nos rasgou o profundo. Mas quanto a mim os pontos continuam a se romper...
- Eu não ia ser feliz sem você... – expirei todo o ar dos pulmões.
Mas ela continuou a dormir. Melhor assim, a chuva acabou.

Capítulo 3


“Judith?”, disse uma voz tosca e seca vinda dos fundos do Hall. Um tapete vermelho com símbolos maias cobria todo o chão, no fim do corredor de paredes nuas, havia uma porta antiga de fechadura torta entreaberta. De lá, surgia uma voz calma, despreocupada e sem esforço, “Sim... Marco...”.


Ele empurrou a porta e ali estava uma mulher de meia idade, com os cabelos loiros presos por uma fita de cetim azul, sentada defronte uma escrivaninha rústica.
- Afinal, o que tanto faz enfurnada nesse quarto?
Olhando de esguelha para Marco, ela tentava se lembrar do espírito jovem do marido de quando se casaram e pensava como era incrível a idade ser capaz de envelhecer a alma.


Respondeu então ao homem de olhos castanhos e cabelos grisalhos “Estou arrumando meus papéis...”.


- Não sei porque perde tempo mexendo com isso. – mirando com ar de desprezo as pilhas pequenas de papéis coloridos.
- Você sabe que é importante para a Belinda... – como que a ignorar cada palavra dele.
- Ah! Você e essa sua filha louca!
- Ela também é sua!


- Não, minha é que não é! Se ela continuar a falar essas histórias malucas que você coloca na cabeça dela, eu vou...
- Você vai fazer o quê? – levantou-se da cadeira num salto e o encarava.
- Vou ser obrigado a pedir medicações mais fortes para você, você está surtando!
- Se nem eu sei da minha loucura, quem é você para medir minha falta de sanidade?
Um grito cortado por um estampido ecoou pela sala, um corpo tombava no chão. O homem saiu do quarto atrás de um de seus funcionários. Parece que logo se entende porque todos os cômodos possuem tapetes vermelhos.
O cetim azul se tornou negro.Uma menininha entra no quarto:


- MÃE!
...


Como eu sei dessas coisas? Dizem que é mais fácil quando se acredita em Deus. Mas sou ateu, não levo a sério essa divindade popular. Se existe um Deus, ele com certeza está no olhar das pessoas e foi isso que eu aprendi com essa menina.
...
- Parece que só eu vim hoje...
- Ah, Bel... Mas todas as noites são só você.


- É, né... Seu bobo...


- Mas como foi com a Judith?


- Nós voamos... – sorria furtivamente olhando o chão.
- Para onde?


- Até onde os pés alcançam.
- Pensei que voar fosse bailar no céu...
- E é... Mas a graça de voar está na certeza com que toco o chão.
Fiz aquela cara de dúvida parada no espaço e ela retribuiu com uma risada gostosa.
-Ah, Fim, o chão pode ser céu, depende só da retina da sua imaginação...
- Então, vamos amar no céu hoje?
- Amar como?
- Do maior jeito que couber no mundo.
- No meu ou no seu mundo?
- No nosso.
- E como é o nosso?
- Tem um abismo apertado – chegando perto dela – onde cabe meu corpo enrolado no seu...
Ela sorriu. E, de repente, pareceu que o amor brotava entre os nossos dedos com o toque.

Capítulo 2


- Pai?
- Minha princesa! – respondeu, colocando-a no colo.
- Por que o senhor some? – fitando seus olhos para não fugir.
- Eu preciso, minha filha, mas você fica com tudo aqui...
- Fica vazio... – disse com tanta tristeza que seu vestido-mar desbotou.
- Mas vazio cheio, né? – tentando reverter a situação.
- Não, cheio de vazio. O único vazio cheio é o silêncio, pai. – levantou-se do colo dele e rumou para a porta – Tchau...
- Tchau, minha filha...
...

O que eu queria mesmo era conseguir explicar como que antes ela era livre, mas de asas podadas... A bela que sonhava domar o mundo para que fera não fosse mais. Mas quem disse que ele quis o fim das suas desgraças? Ficou sozinha até achar que solidão não é mais ser só.

...

- Bom dia, Serafim de asas azuis!
- Como acordou, pequena?
- Fechando os olhos... – apertou leve minha mão – me diz... – sentando-se ao meu lado.
- Sim?
- Me descreve?
- Ah... Vejamos... Linda?
- Não! Sério... Me descreve?
- Ta... Ta... Estatura mediana, cabelos castanhos escuros, lisos, na altura dos ombros... Mãos pequenas... Olhos cor de oliva... Coração maior que o meu... Tem passos calmos e sorri pra mim.
- Bem melhor... Obrigada!
- Por que o pedido?
- Cansei de espelhos, prefiro ouvir de você.
- Sendo assim, você ainda tem uma pinta enigmática próxima ao nariz e acima da boca do lado direito.
- Haha! Você não tem jeito...
- Mesmo... O que você guarda nessa pinta?
- Não sei, eu nem a vejo... O que você guarda na minha pinta?
- Essa é fácil! Oras, tudo o que você quiser que eu guarde.
- Tudo?
- Tudo.
- Eu quero... Que você se guarde nela.
- Ah... Então... Me descreve?
- Cabelos negros, lisos e bagunçados pelo vento escorregam sobre seus olhos cor de oceano, um azul tão escuro que só enxerga profundeza... E... – ajeitando-se em mim – Seus braços são fortes... O suficiente para me guardar.
- Falando assim, eu nem pareço esse moribundo que te acompanha.
- É porque no meu mundo ser moribundo é ser príncipe da própria vida.
- E onde ficam os loucos? Com pincéis nas mãos?
- Aaaah... Loucura não é vanguarda artística. No meu mundo, os loucos foram ouvidos.
- Mas vivem colocando a loucura como estilo de vida, moda vazia... Não entendo. Como ouvir algo
tão sem sentido para o seu mundo descapitalizado?
- Não, Serafim, os verdadeiros loucos foram presos. O nosso mundo antigo não aceita quem vai contra sua moeda.
- Sempre achei que hospícios fossem lugares para doentes mentais.
- É o grande mal, tentam passar a imagem de que está tudo perdido, sem solução, mas é nada, é
só câncer do desespero.
- Câncer do desespero?!
- O jeito que se fica depois que o mundo te deixa.
- Continuo não entendendo nada, Bel.
- Quando o mundo não te ouve mais, você guarda um silêncio que só cresce, um silêncio que vive
até te engolir. É tanto silêncio que toda companhia é sozinha e o mundo inteiro fica vazio de tão cheio, porque tudo fica em vão. E não te resta mais nada, a não ser um desespero que cresce a proporção do silêncio, um câncer que engole tudo, menos o silêncio. Sobrando em você todo o desespero do mundo e todas as suas palavras silenciadas por ouvidos que não conseguem escutar.
- E ele te engole?
- Engole sim. É aí que a gente enlouquece.
- Que coisa triste...
- Meu fim, – cruzando os dedos – posso te perguntar...?
- Qualquer coisa, Bel.
- Você acha que a gente é louco?
- Você acha que tem jeito de a gente ser triste?
- É que... – pensativa.
- Acho que Judith está sentindo sua falta! – interrompi.
- Verdade...
- Bitoca. – disse, beijando seus lábios.
- Até a noitinha, Grande.

Capítulo 1





- Mágicos não usam truques, usam metáforas! – bradou como se tivesse descoberto o céu.
- Como você pode ter tanta certeza disso? – retorquiu o reverendo.
- Girassóis, professor, girassóis...
- Explique-se, senhorita Belinda.
- O senhor nunca ouviu os girassóis? Todos os dias, eles se curvam diante do Sol e pedem licença para que as outras estrelas não percam o seu brilho... – agora, já de pé, contando estrelas de isopor penduradas no teto.
- Muito bem, senhorita Belinda, chega de poesia. As noites se originam do movimento da Terra em torno do seu próprio eixo. O Sol não interfere em nada. – fechou seu caderno de anotações bruscamente e mirava-a como um atirador franco-prussiano em dias da antiga guerra.
- O senhor é mesmo surdo! A Terra gira porque o Sol canta melodias e, de tão contente, ela não se cansa de bailar... – suspirou profundamente, buscando paciência.
- Barbaridade... Barbaridade... Você não tem mais jeito, menina! Encerramos por hoje... – expelia enquanto caminhava até a porta... – é melhor descansar, avisarei seu pai.
Belinda o fitou docemente com um sorriso furtivo, como se já esperasse, já aguardasse... o momento em que ele partiria sem entender o seu tesouro. Ela nunca aprenderia algo com a escola se a escola insistisse em nunca estudá-la. A verdade é inútil se for engolida.
A porta se fechou e o sinal bateu, enfim poderia passar o resto do dia no pátio, contando histórias para as margaridas...

...

Argh! Como explicar para você, pobre leitor desalmado?! Que o que ela tinha era ceticismo demais?! Narrar... Narrar... Narrar! Só assim a liga metálica se desfaz...

...
, cochichando para si mesma as vírgulas dos meus pontos finais, sorria a Belinda cuja beleza não era minha. Entre garçons e clientes, lá estava ela, a minha única platéia. O que ela avistava? Um músico sem aplausos?

- “Eu, pensando em você
Pensando em nunca mais
Pensar em te esquecer
Pois quando penso em você
É quando não me sinto só
Com minhas letras e canções
Com o perfume das manhãs
Com a chuva dos verões
Com o desenho das maçãs
E com você me sinto bem.”

- “ Eu estou pensando em você
Pensando em nunca mais
te esquecer...” [1]

- Eu volto amanhã, obrigado. – disse, virando para guardar meu violão.
- Será o fim ser assim, Serafim?
- Perdão, quem...? –ousei, levantando os olhos. Ela sorria com as mãos roubando uma flor do meu paletó.
– ah.. Assim como?
- Flor... pétala e espinho. Por que todo mundo só lembra da pétala?– já sentada do meu lado.
- Acho que porque é mais doce... – falei como que dizendo algo óbvio.
- é... mas o espinho vem antes. – contesta da forma mais tímida possível.
- Oras, Belinda, você prefere a dor do que a doçura?
- Claro que não! Eu prefiro os dois. Eu... Eu gosto é da flor...
- Mas nem toda flor tem espinho!
- As desse tipo já sabem o fim.
- E qual é o fim?
- As pessoas roubaram seus espinhos.
- Enlouqueceu? Por que as pessoas iriam querer dor?
- Jamais... Roubar o espinho é ter só beleza.
- Acha mesmo?
- Não.
- Como não?
- E eu tenho que dizer tudo? Pois me diga você, o moço que carrega o fim pela vida.
- Pergunta difícil... – não contive o sorriso – Todas as noites, eu toco para pessoas que não possuem ouvidos, mas não me importa, enquanto eu ouvir minha música, o precipício é do outro que não alcança minha arte.
- Viu só como sabia! – afanou meus cabelos – As pessoas ignoram o óbvio.
- Ignoram, mas não enxergo aqui a tal ignorância...
- Espinhos não são tropeços de Deus. A doçura vem de cortes profundos... Ah! – levantou-se num salto – tenho que ir ver Judith! Quase me esqueço.
- Judith?
- Minha borboleta. – beijou-me a fronte – Amanhã me dará outro final?
- Talvez... – devorando seus olhos - Se me disser então o que é belo.

Ela partiu sem dizer mais nada. Ela não tinha nada mais a dizer.O belo não é para ser dito.
[1] Paulinho Moska – Pensando em você