02 de Janeiro de 1998
Saí com um coração vazio. Feito uma casa de teto transparente, mas tão alto que mal se enxerga o céu. Sempre me perguntando “e agora?”, como se fizesse alguma diferença... Larguei tudo e foi como se nunca tivesse sido tudo. Peguei uma mochila, um cantil, dois pares de roupas, pouco dinheiro, esse caderno. Fui. Pedalei 150 km e desisti da idéia de seguir norte. Até agora não conheci ninguém, deve ser provavelmente porque minha vontade é de solidão. Uma hora passa. Caminhoneiros são perigosos, vou ter que arrumar outro transporte. Quanto ao destino, a ordem alfabética soa a melhor opção.
Sem muita vontade de escrever,
Bel.
...
...
Dizem que o choro começa quando uma gota salgada desce do olho. Cortando a face delicado, como que tentando apagar um incêndio íntimo. Labareda alcoólica. Transparente. Mas não. O choro começa de uma lágrima que fervilha lá de dentro, num poço escaldante de dor. O choro é o que transborda, o insuportável. E a Bela já não tinha como transbordar mais, o poço tão escaldante levou a dor à calefação, restando apenas um buraco de antimatéria.
...
- E se eu te dissesse que meu amor não tem definição?
Ela, que se entretinha catando acerolas do pé, virou o rosto de uma vez.
- Ah, é mesmo? E vai me dizer como que me ama?
- Oras, dizendo...
- Nem como amigo, nem como amante, nem como nada?
- Não. Como você.
- A que fim você quer levar a isso, Serafim?
- De que não tem fim, Bel.
- Está a me dizer que vai se contentar...
- com toda e qualquer forma de amor em que caiba você.
Ela sorriu, levando uma acerola aos lábios, inspirou.
- Já te disse que acerolas me deixam apaixonada?
- Então para conquistar seu amor preciso te dar acerolas?
- Haha! Não, elas só me lembram do amor que fica guardado em mim.
- Amor por quem ou quê?
- E eu vou lá saber... Minha cabeça é cheeeia de acerolas!
- Mas eu fico aonde nisso?
- Você... entrou em mim de um jeito que minha única maneira de caber foi dentro de você.
- E, quando abraçou essa pedra oca de sentimento que eu carrego, de lá brotou uma flor.
- Não! Um pé de acerola.
- Ah, Bel! Acho que já temos uma plantação então...
- Como você acha que seria se todos plantassem acerolas?
- Enjoativo?
- Quero dizer... Vários tipos de acerolas.
- Existiria mais acerola do que pessoa.
- Que já nem caberia dentro da gente é?
- É, tanta que seria uma pandemia.
- Toda gente ia respirar acerola?
- Todo tipo de acerola.
- Toda forma de amor...?
- É, Bel... Toda forma de amor...
Ela me abraçou.
- Também te amo sem definição.
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